A Grande Recessão pode finalmente ter o seu primeiro verdadeiro símbolo de status. Ele tem muito em comum com extravagâncias recentes. Assim como um Range Rover ou uma geladeira Sub-Zero, tem um chassi sólido projetado para ser funcional. Como uma mala Louis Vuitton, ele tem um design elegante e uma pátina de história que remonta ao século 19. Como uma garrafa de água San Pellegrino, ele evoca o modo de vida gentil de que os europeus vivem se gabando.
Esse novo objeto é a reluzente bicicleta holandesa preta, de design inalterado desde a Segunda Guerra Mundial. Cada vez mais importada para os EUA e começando a ser vista pelas ruas de Nova York (e na vitrine de pelo menos uma loja de vestuário), ela parece ter tudo de que uma boa mania precisa. O que inclui um preço salgado – em geral, entre US$ 1 mil e 2 mil – e a história charmosa de como as bicicletas têm sido parte indispensável da pitoresca paisagem urbana holandesa ao longo de décadas.
Mas poderia Nova York voltar a ser Nova Amsterdam? Poderia a bicicleta, a resposta urbana ao cavalo selvagem Mustang, desacelerar e passar a usar paralamas? Poderia o ciclista urbano, de roupa rebeldemente misturada ou peças colantes em cores berrantes, crescer e vestir uma gravata?
Obstáculos sérios apresentam-se pelo caminho. Mesmo conforme as vendas de bicicletas e a quantidade de ciclistas crescem, e à medida que a cidade fica mais amigável para a bicicleta do que nunca fora antes, os polos extremos da cultura ciclística ainda são, de várias maneiras, hostis ao ciclismo como ele é praticado nos Países Baixos. Lá, onde pedalar uma bicicleta para ir trabalhar de terno é um ato tão trivial quanto beber uma xícara de café, não existe cultura da bike – a cultura inteira inclui a bike. O pedigree civilizado da bicicleta holandesa equipara-se ao seu design antiquado: ela vem com paralamas, protetor de corrente, dínamo e bagageiro – item original de série, como diria Detroit. Com uma bike equipada dessa forma, um homem pode vestir o que quiser para ir ao trabalho e não precisa se preocupar com sujeira – não é necessário usar a indumentária kamikaze dos bike couriers.
Felizmente, os novos cortes da moda masculina, com suas formas compactas e esportivas (inclusive nos ternos), parecem feitos sob medida para ir ao trabalho de bicicleta. E como as bicicletas holandesas são pedaladas numa postura ereta e não inclinada para a frente e você se desloca numa velocidade lenta e segura, o suor não é aquele problema que seria numa bicicleta de estrada.Assim sendo, com 270 quilômetros de ciclovias em Nova York, faz sentido que a Dutch Bike Co. de Seattle esteja abrindo uma filial na cidade neste verão, sua terceira loja nos EUA. E mais: bicicletas tradicionais com posições eretas, paralamas e protetores de corrente – denominadas city bikes – são a seção que mais cresce em lojas como a Bicycle Habitat no SoHo.
Todavia, mesmo com o uso da bicicleta como transporte crescendo 35% em Nova York de 2007 para 2008, segundo o Departamento de Transportes, ainda há impedimentos à sua adoção ampla pela cidade. Eles vão do óbvio – tipo, como você trava a bicicleta de maneira que ela não seja furtada em 30 segundos? – até questões de estilo mais escorregadias. Como se vestir para ir trabalhar? Qual bicicleta tem um nível aceitável de masculinidade? São questões capciosas. Como o desfile de bicicletas speed, mountain bikes e, mais recentemente, roda fixa veio a expulsar do asfalto a bicicleta tradicional, acessórios como paralamas e protetores de corrente passaram a ser considerados – por homens, ao menos – como excentricidades. Se um cara vai pedalar, ele quer imaginar-se como Lance Armstrong, não como Pee-Wee Herman.
James Vicente, um promotor na Corte Criminal de Kings County em Brooklyn, conhece o dilema. Ao visitar Amsterdam há cinco anos, ele inspirou-se a ir trabalhar pedalando de terno e gravata. (Ele converteu sua speed numa bicicleta de roda fixa, com paralamas removíveis.) "Eu gostei da perversidade da coisa", diz. "Gosto de dizer: 'Qualquer um pode fazer isso. É normal.' Eu nem pedalo de capacete, mesmo com as pessoas me chamando de idiota. Pedalar uma bicicleta deve ser algo normal, e você não deveria ter que usar um chapéu ridículo de isopor." Certo dia ele colidiu com outro ciclista, abrindo uma fenda no seu paletó e outra no seu orgulho. Hoje em dia, o terno reside num armário no escritório, e ele só pedala de jeans e camiseta polo. Teria se envolvido num acidente se estivesse com uma bicicleta holandesa? Ele ri. "Provavelmente não", diz. "Eu estava pedalando sem as mãos no guidão e o outro cara saiu da ciclovia. Se eu usasse uma dessas bicicletas, provavelmente teria me mantido melhor em linha reta."
O governo da cidade está atendendo às necessidades práticas dos ciclistas tão rápido quanto pode. O Departamento de Transporte instalou paraciclos e está reavaliando a ideia de um sistema de bicicletas compartilhadas como o que foi criado em Paris há dois anos, o Vélib'. Um estudo de 2007 do Departamento de Planejamento Urbano descobriu que os principais motivos que as pessoas citam para não usar a bicicleta como transporte são o medo de furtos e a falta de estacionamentos seguros. O segundo problema será combatido por dois projetos de lei que foram submetidos ao Conselho da Cidade, a câmara municipal de Nova York. Um deles, agendado para ir a votação este mês, obriga todos os novos edifícios comerciais e residenciais a possuírem espaço dedicado ao estacionamento de bicicletas. O segundo projeto assegura o acesso de bicicletas a edifícios mais antigos, muitos dos quais são historicamente hostis a elas.
É preciso notar que o mundo da moda tampouco tem sido amigável à bicicleta. Ao longo de um século buscando parecer esportiva, a moda tem roubado ideias de todo tipo de esporte: equitação, caça, vela, polo, rugby, até o motociclismo. Mas o ciclismo? Nada, exceto piadinhas.
Assim, é bom ver o ciclismo gantar algum tipo de validação, cortesia da Club Monaco. Este mês, como um inusitado acessório da sua linha de roupas urbanas despojadas, ela começou a expor e vender bicicletas da centenária marca Royal Dutch Gazelle em sete das suas lojas (a bicicleta pode ser encomendada em qualquer uma delas).
Durante as férias na Inglaterra no verão passado, James Mills, um executivo da Club Monaco, avistou um londrino elegante pedalando uma Gazelle. De volta a casa, ele importou a sua da Holanda. Poucas semanas depois, ele já a pedalava orgulhosamente até o trabalho. Sua bicicleta ficou tão popular durante uma sessão de fotos que acabou entrando no ensaio, com modelos montadas nela. Entusiasmado pelas imagens, Mills e seus colegas entraram em contato com a Dutch Bicycle Company em Somerville, Massachussetts, que é a importadora das bicicletas, e fizeram um acordo para distribuí-las em suas lojas. "Já vendemos uma dúzia", diz Mills. "E elas só estão nas vitrines há uma semana."
Ciclistas radicais podem despresar a visão de uma bicicleta numa boutique de roupas. Mas como Vicente observou, o beijo da moda pode ajudar as pessoas a adotarem a ideia de uma bicicleta mais prática. "É só lembrar quais são as bikes mais descoladas em Nova York agora: as de roda fixa, que são realmente impraticáveis", diz. Ainda assim, ele concede que o machismo da cultura ciclística é difícil de combater. E acrescenta: "A única pessoa que eu conheço que tem uma bicicleta holandesa é uma mulher."
George Bliss, que dá aula no Pratt Institute no Brooklyn e é proprietário da Hub Station, uma bicicletaria tradicional no West Village, acredita que a melhor divulgação para o ciclismo cotidiano vem das pessoas que estão fora do mundo do ciclismo, não dentro dele. "Eu pensava que o problema era a cultura do automóvel, mas agora acho que é a cultura da bicicleta", diz. O que isso quer dizer é que o discurso a respeito do ciclismo urbano é dominado por ciclistas fanáticos que não têm o desejo ou o talento para atrair pessoas que não enxergam a si mesmas como ciclistas, que é o caso de quem pedala para ir trabalhar.
É certamente assim que os donos de holandesas pensam de si próprios. Peter Moore, um fornecedor e desenvolvedor, pedala uma bicicleta holandesa WorkCycles para o trabalho há anos. Ele até a usa para levar as crianças à escola (uma atrás, outra no selim, enquanto ele pedala de pé – algo bem holandês). Ao mesmo tempo, ele tem consciência de como o estilo é importante para os novaiorquinos. Ex-modelo e filho da falecida editora da moda veterana Nonnie Moore, Peter prefere roupas que combinem com o visual da bicicleta: camisas juvenis Steven Alan, uma gravata, um blazer xadrez da Ralph Lauren, calças do exército e um par de robustos sapatos sociais. "Tudo forma um conjunto", ele explica. "Eu tento me vestir com algum estilo para honrar a qualidade da bicicleta."
Por boa que ela pareça, a bicicleta holandesa não é perfeita para Nova York sob todos os aspectos. Grande e pesada, ela não é ideal para espaços restritos, cantos apertados e elevadores lotados. Mesmo não se tratando de San Francisco, a cidade tem morros suficientes para tornar desejável uma bicicleta mais leve. E pelo preço, pode ser uma escolha melhor uma bicicleta dobrável que você possa carregar consigo, ou um modelo antigo que não seja tão caro, dada a alta incidência de furtos.
Mesmo assim, pedalar uma holandesa é um conforto fora do comum e uma lição fascinante de geometria de bicicletas. O selim baixo e o guidão em curva forçam você a sentar ereto. O quadro pesado e o ângulo de suas pernas em relação aos pedais tornam difícil acelerar muito. A largura do guidão a torna uma montaria mais majestosa e menos ágil – mais ou menos como dirigir um Lincoln Continental ano 1967. Você se sente mais seguro, calmo; enfim, adulto. A criança energética de 8 anos que mora dentro de muitos ciclistas não ganha muito estímulo. Em resumo, você rapidamente compreende porque os holandeses não usam capacetes – é só uma gracinha de estilo a mais.
Esse texto original é de David Colman, foi publicado no New York Times em 15/04/2009. A tradução é de Mario Amaya para o Blog Gatas de Rodas.
Como gosto muito e tenho afinidades com texto e achei importante reproduzi-lo novamente, ilustrando com fotos de David Roemer (com pequenas inserções de minha parte).
O texto nos revela como, não apenas nova York, mais os resto do mundo esta recebendo essa invasão Cycle Chic, que começou na Europa ("onde pedalar uma bicicleta para ir trabalhar de terno é um ato tão trivial quanto beber uma xícara de café, não existe cultura da bike – a cultura inteira inclui a bike.") e já está fazendo aos poucos parte de nosso dia-a-dia .
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